Impunidade que mata

 


Após seis anos dos assassinatos da Fazenda Tucumã, não há novo Tribunal do Júri em Ariquemes/RO para julgar os acusados. 


O caso da Fazenda Tucumã, em Cujubim, já chamou a atenção da mídia nacional e internacional:


“A história do assassinato dos dois sem-terra começa com a reintegração de posse da fazenda Tucumã, em Cujubim, que estava ocupada pelo acampamento "Terra Nossa". O dono da área não tinha título da propriedade.Em janeiro de 2016, o grupo sem-terra saiu do local por determinação da justiça. Não houve incidentes. A tragédia ocorreu em seguida. Após a reintegração, cinco ex-ocupantes voltaram ao antigo acampamento, sob a justificativa de recolher objetos que ficaram para trás. Era 31 de janeiro. Ao chegarem, encontraram os resquícios da ocupação destruídos. Deixaram o local e foram emboscados por um grupo armado, de acordo com testemunhas. Tentaram fugir e foram perseguidos por dezoito horas, segundo o MP. No dia seguinte, o corpo carbonizado foi encontrado dentro de um carro. Exames de DNA confirmaram que era o de Alysson Henrique de Sá Lopes, 23 anos. O estado do corpo não permitiu que a perícia identificasse a causa definitiva da morte. Ruan Lucas Hildebrandt de Aguiar, 18 anos, nunca foi achado, apesar das buscas, e foi dado como morto.” (Amanda Rossi,BBC Brasil)


No domingo 31 de janeiro de 2016, três grupos de pistoleiros da Fazenda Tucumã, na Linha 114 de Cujubim, em Rondônia, que estavam contratados para impedir o retorno das famílias despejadas pela justiça na sexta feira, descobriram cinco sem terras nas imediações da fazenda.


Segundo os sobreviventes, eles já estavam retornando andando para o seu carro, deixado por precaução numa fazenda vizinha. Alguns não estavam no acampamento no dia da reintegração, sexta feira, e apenas tinham ido procurar por suas coisas, que tinham ficado para trás. Não acharam nada, apenas alguma galinha que ninguém tinha podido pegar, que ainda estavam pelo antigo local do acampamento.


Os cinco já estavam indo embora, andando no meio dum pasto duma fazenda vizinha, quando os pistoleiros começaram a atirar neles desde a estrada, sem os acertar, na primeira vez. Não satisfeitos com os ter afugentado, continuaram os procurando e começaram uma perseguição impiedosa.  Segundo os autos, entre os perseguidores havia alguns policiais fora de serviço.


Quando foram novamente descobertos, dispararam de novo contra eles. Conta um dos sobreviventes que foi ferido de raspão por uma bala que estraçalhou o mourão duma cerca. O grupo se dispersou. A caçada humana durou até a madrugada de segunda feira, com grupos armados fazendo blitzes nas linhas de acesso, e controlando o movimento da estrada a procura dos fugitivos.  Dos cinco sem terra perseguidos, três conseguiram se reagrupar e fugir escondidos nas toras dum caminhão de madeireiros amigos.


Menos sorte teve o jovem Alysson, de 21 anos, de Rio Crespo, filho do dono do carro utilizado por eles, que voltou para o local onde estava estacionado o veículo, numa fazenda vizinha, e foi pedir água para o caseiro da mesma, antes de ser surpreendido por um grupo da polícia que o aguardava emboscado. O caseiro da fazenda foi testemunha como ele foi rendido no chão, preso e levado, assim como também o seu carro. Por isso sabemos que, mesmo rendido, Alysson foi executado após ser preso, pois depois apareceu morto e o corpo dele carbonizado dentro do seu carro, também queimado. Como um recado macabro deixado para todo o grupo de sem terras.


Também não voltou para Cujubim o jovem Ruan, que tinha apenas 18 anos. Os seus companheiros viram ele pela última vez caindo na fuga, após os cinco serem atirados pela segunda vez, quando foi dispersado o grupo. Depois nunca mais apareceu. Chegando em Cujubim contaram para os pais dele o que tinha acontecido e que não tinham mais notícias dos outros dois.


Quando os pais ficaram sabendo que estava desaparecido, cobraram das autoridades a busca do Ruan e mexeram céus e terra para encontra-lo. Em realidade foi graças a insistência da mãe, uma professora titular do Conselho Tutelar de Cujubim, e a pressão acima do governo de Rondônia, que acabou sendo criada uma força tarefa da polícia civil para apurar estes fatos. Por este motivo e por jamais desistir de procurar o filho, ao final, ela teve que fugir de Cujubim com um filho menor de idade e ainda hoje mora longe de Rondônia.


Por este episódio da Fazenda Tucumã, dois pecuaristas foram presos e acusados de mandantes, assim como alguns pistoleiros e policiais acusados como participantes e autores.  De forma inédita em Rondônia, parte deles chegaram a serem julgados pelo Tribunal de Júri da Comarca de Ariquemes, após serem acusados pelas mortes de Alysson Henrique de Sá Lopes e de Ruan Lucas Hildebrandt de Aguiar, assim como por intento de homicídio de Renato de Souza Benavides, Raimundo Nonato dos Santos e Alessandro Esteves de Oliveira,


Para provar os fatos tiveram um papel decisivo as declarações de três pessoas ameaçadas de morte, que foram protegidas pelo programa federal de proteção às testemunhas. Um deles depois de ter sofrido um atentado em Cujubim, que o deixou aleijado de um braço. Outras cinco testemunhas foram assassinadas antes do julgamento: Um dos três sobreviventes Renato de Souza Benavides, assim como Roberto Santos Araújo, Elivelton Castelo do Nascimento, Jeferson Nipomuceno e Ademir de Souza Pereira, uma das principais lideranças do acampamento. Todos eles também estavam acampados no mesmo grupo de sem terra da Fazenda Tucumã.


Ainda dois jornalistas locais que tinham informado sobre os fatos e acompanhado as buscas, também foram perseguidos. O Jornalista Ivan Pereira Costa, de 52 anos de idade, proprietário do site Veja Notícias, foi atingido num intento de homicídio, tendo que deixar casa e trabalho na cidade de Cujubim. Enquanto o mototaxista, Vanderlei Soares de Arruda, conhecido como Bigode, também foi atacado, sendo assassinado em Cujubim em suposta queima de arquivo, pois frequentava e apoiava as equipes da fazenda e “sabia muito”.


O corpo do Ruan nunca foi achado. Segundo testemunhas presenciais, não houve nunca buscas reais do desaparecido, mais parecendo preocupadas as equipes em esconder provas e suspeitos do que em achar o desaparecido. Mesmo assim foi declarado morto pela justiça e os acusados foram qualificados judicialmente pelo assassinato dele.


Já o corpo carbonizado de Alysson dentro do carro apenas foi identificado pelo DNA um ano após ser achado. Um dos acusados, que tinha um arsenal de armas dentro duma camionete, incluindo uma metralhadora do exército boliviano, o sargento da reserva Moisés Ferreira, escapou de forma suspeita após ter sido detido por uma viatura da PM. Somente anos depois foi preso novamente em outra área de conflito em Machadinho do Oeste, após ter sido identificado também como principal autor da chacina de nove pessoas no Distrito de Taquaraçu do Norte, no Mato Grosso.


Radicalizados, a sede da Fazenda Tucumã foi queimada e os acampados do Acampamento Terra Nossa se integraram no movimento da Liga dos Camponeses Pobres, a LCP, e conseguiram reocupar o local, que se comprovou ser uma terra pública grilada pelos fazendeiros. Porém foram despejados judicialmente de novo, acabando migrando para outra área em disputa, onde a maioria das famílias conseguiram lotes das terras. A área de terra pública da antiga Fazenda Tucumã também já foi vendida e trocada de nome para sua regularização fundiária pelos novos donos da posse.


Apesar da atividade intensa de eliminação de provas e de testemunhas, foi designada uma força tarefa da polícia civil na apuração do caso, chegando ao julgamento inédito dos acusados das mortes dos dois jovens e da tentativa de assassinato dos outros três, que foi concluído em 27 de Outubro de 2017 com a condenação a 30 anos de Rivaldo de Souza (executor); 30 anos de Moisés Ferreira de Souza (executor); 28 anos e perda de farda ao cabo da Polícia Militar Jonas Augusto dos Santos (executor). O pecuarista Sérgio Sussuma Suganuma foi condenado apenas a 08 anos e 04 meses de prisão por intermediar a contratação dos executores.


Já o suposto mandante e grileiro da Fazenda Tucumã, o empresário e contador de Ji Paraná, Paulo Iwakami, que tinha permanecido preso preventivamente, acabou sendo absolvido, apesar de manter por rádio contato permanente com a fazenda onde aconteceram os fatos e de reconhecer ter contratado as equipes “da pesada”, os mesmos acusados da autoria das mortes. Segundo depoimentos da filha do Paulo no processo, foi o próprio comandante da Polícia Militar, coronel Enedy, que teria recomendado em reunião anterior ao despejo a contratação das milícias armadas para impedir o retorno dos sem terras.


Todos os três grupos das milícias armadas da fazenda teriam participado da caçada de Ruan e Alysson e dos outros três sem terra. Segundo as acusações do Ministério Público, uma das equipes de pistoleiros que deveriam impedir o retorno dos membros do Acampamento Terra Nossa, estava comandada pelo cabo Jonas Augusto e era formada por 17 policiais militares de Cujubim e Ariquemes, que recebiam diárias pelo trabalho extra. Excetuando o cabo, estes policiais até agora permanecem em total impunidade e apenas alguns foram acusados de participar da caçada dos sem terra e inicialmente presos preventivamente.


Outra equipe de pistolagem era formada por três pessoas e foi contratada poucos dias antes da reintegração de posse da área. Paulo também reconheceu ter contratada a equipe formada pela dupla Rivaldo e Moisés por R$ 105.000,00 (cento e cinco mil reais) através de Sérgio Suganuma, também japonês, amigo e pecuarista que na época era Presidente da Associação Rural de Ji Paraná, e que também estava envolvido num conflito, onde aconteceu a expulsão violenta dum acampamento, na chamada Fazenda Paredão, terra pública grilada por ele perto da RO 257 em Machadinho do Oeste. 


Após o juízo e condena pelas mortes da Fazenda Tucumã, Rondônia teve nos anos posteriores uma redução sensível do número de assassinatos no campo. Contudo, a sentença do Tribunal foi anulada, pois os membros do júri julgaram apenas em base ao homicídio incontestável do Alysson, e não consideraram a morte do desaparecido Ruan, apesar que os acusados já tinham sido qualificados também pela morte do mesmo. Este erro motivou recursos do Ministério Público e da Defesa.  


Atualmente a maioria dos acusados e condenados estão soltos, a espera de um novo julgamento na Comarca de Ariquemes, que até agora sequer foi anunciado. Quanto mais tempo passa, mais difícil fica achar as testemunhas que sobreviveram e que hoje encontram-se espalhadas, após o primeiro julgamento.


Em realidade o julgamento dos pecuaristas, pistoleiros e policiais presos e condenados da Fazenda Tucumã foi apenas uma exceção da situação geral de parcialidade da justiça e impunidade da violência no campo de Rondônia.


Os casos sem esclarecimento contam-se por dezenas, sendo uma das últimas vítimas o indígena Ari Uru Eu Au Au, assassinado em 17 de abril de 2020, e que já passou por investigações da polícia civil de Jaru e da polícia federal de Rondônia sem resultados até agora. 


Por décadas, a investigação das mortes e assassinatos no campo em Rondônia acontecem apenas quando são acusados sem terras ou pequenos posseiros. Como na chacina da equipe do conhecido pistoleiro Nego Zen e esposa, no ano passado em Vilhena. Para eles todo o rigor da lei. Ou atuações sumárias, especialmente se houve morte de policiais nos conflitos. Nenhuma da dúzia de mortes de camponeses acontecidas em 2021 nos distritos de Nova Mutum e Abunã de Porto Velho, a maioria atribuídas a policiais, foi apurada até o momento. 


Quando as vítimas são camponeses ou indígenas, poucas vezes os autores são identificados, presos e julgados. Mandantes, excepcionalmente, como no citado caso da Tucumã. A lentidão nas apurações e a impunidade predomina de forma gritante, sendo uma das principais causas da continuação da violência. Apesar dos esforços de setores do ministério público, que prenderam alguns policiais acusados de formar parte de milícias armadas no sul do estado, a impunidade é especialmente grave quando os suspeitos das violências são das fileiras dos agentes públicos, daqueles mesmos que deveriam as impedir.


A impunidade corroe a fé e a confiança na justiça para resolução dos conflitos e pacificar os ânimos. 


E provoca tanto reações de quem busca vingança por sua conta, como a adoção de métodos violentos de quem não duvida em recorrer de forma reiterada a ameaças, intimidações e agressões, sabendo que o uso de violência nunca dá em nada.


A impunidade dos poderosos, enraizada nos conflitos agrários, fomenta a continuidade e o aumento da espiral de violência no campo.

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